A indisponibilidade dos bens dos devedores inscritos em Dívida Ativa frente à limitação da atuação da Administração Tributária anterior à propositura da execução fiscal
O presente estudo tem por escopo tratar da averbação pré-executória imposta pela recente Lei n. 13.606/2018, levando em consideração que a inovação legislativa em comento desencadeou amplas discussões no meio jurídico, em detrimento, principalmente, da sua duvidosa constitucionalidade e a amplitude dos poderes conferidos ao Fisco ainda na esfera administrativa da cobrança da dívida ativa.
Em síntese, a lei, que entrou em vigor no dia 09 de janeiro do ano corrente, permite que a Fazenda Pública Federal, no âmbito de sua administração tributária e sem autorização judicial, torne indisponíveis os bens dos devedores inscritos em dívida ativa da União, tendo alterado a redação da Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002 para acrescer o art. 20-B nos seguintes termos, in verbis:
Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados
[...]
§ 3o Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:
I - comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e
II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.
(Incluído pela Lei n. 13.606/2018).
Nesse sentido, tem-se que, passado o prazo para pagamento constante da notificação de inscrição em dívida ativa sem que o contribuinte efetue o pagamento do débito, o Fisco Federal poderá tornar indisponíveis os bens do devedor a partir da averbação da CDA, constituindo, portanto, verdadeira penhora administrativa.
A fim de regulamentar o procedimento a ser adotado para efetivação da norma, a Procuradoria da Fazenda Nacional editou a Portaria PGFN n. 33/2018, publicada no DOU de 09 de fevereiro de 2018, que expôs, em síntese, que a averbação tem o intuito de tornar público e oponível a terceiros da existência de débitos inscritos em dívida ativa e da restrição quando aos bens sujeitos a arresto ou penhora, determinando ainda quais bens estarão sujeitos à averbação, sendo estes, todos os que forem integrantes de seu patrimônio para pessoa física e integrantes do ativo não circulante para pessoas jurídicas.
A Portaria definiu ainda que a averbação será objeto de nova notificação ao contribuinte, possibilitando que este apresente impugnação, inclusive, em relação ao seu excesso, assim como que, após a averbação, ão apresentada ou rejeitada a impugnação, o ajuizamento deverá ser promovido no prazo de 30 (trinta) dias.
Insta mencionar que o instituto tem, de acordo com a Portaria, o intuito de evitar a fraude à execução, em que pese já conter no art. 185 do CTN a norma de que a alienação de bens após a inscrição em dívida ativa se presume por fraudulenta, sendo plenamente possível que seja anulada a operação de alienação por determinação judicial em momento posterior.
Ainda, o parágrafo único do art. 185 do CTN determina que a presunção de fraude à execução só ocorre quando o devedor não reservou bens ou renda suficientes para garantir a integralidade da dívida, enquanto que a averbação pré-executória não faz tal distinção, sendo que esta incidirá, nos termos do art. 22, caput e § 2º da Portaria PGFN n. 33/2018, sobre o patrimônio do contribuinte até o limite do débito inscrito e sobre bens e valores determinados por sua ordem de preferência, que prioriza a averbação de imóveis, e pela discricionariedade ampla da Administração Pública, impedindo o contribuinte de administrar livremente a sua propriedade e determinar quais bens ou valores serão reservados para o pagamento do tributo e quais serão utilizados para outros fins.
Ainda, insta salientar que em 2005, em virtude da Lei Complementar n. 118 de 2005, foi acrescido ao Código Tributário Nacional o art. 185-A, que já previa pela indisponibilidade de bens, todavia, apenas mediante autorização judicial e após a interposição de execução fiscal, assim, após a possibilidade de pagar ou apresentar bens à penhora, senão vejamos:
Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005).
Frise-se, de mesmo modo, que o referido artigo foi incluído no CTN mediante lei complementar, enquanto que, a possibilidade de indisponibilização de bens na fase pré-executória foi determinada por lei ordinária e regulamentada mediante portaria da PGFN, o que, gera a primeira inconstitucionalidade, sendo esta do ponto de vista formal.
Ora, em relação ao Direito Tributário, tem-se pela necessidade de tratativa de algumas matérias de maior relevância e complexidade por Lei Complementar, nesse sentido, dispõe o artigo 146, III, "b", da Constituição Federal confere à lei complementar a missão de estabelecer as normas gerais sobre o tema. Tanto é que, reitere-se, a já existente possibilidade de indisponibilização de bens, com fulcro no art. 185-A do CTN foi admitida mediante edição de lei complementar.
Diante da análise sistemática da norma constitucional, do art. 185-A do CTN e da Lei 13.606/2018, observa-se que a modificação legislativa, em que pese não atingir elementos da regra-matriz de incidência tributária, dispõe sobre matéria que já havia sido regulamentada pela devida lei complementar e que determina de forma taxativa que somente o Poder Judiciário poderia determinar a indisponibilidade de bens, impondo, inclusive, a revogação tácita da norma.
Todavia, não se admite que lei ordinária esvazie o conteúdo de lei complementar como ocorre no presente caso, tendo em vista que propõe a decretação de indisponibilidade de bens do devedor no âmbito administrativo, enquanto que a lei complementar prevê pela necessidade de prévia interposição de execução fiscal e da competente ordem judicial baseada no cumprimento de diversos requisitos como a citação do devedor, inexistência de pagamento ou apresentação de bens à penhora no prazo legal e não localização de bens penhoráveis após esgotamento das diligências realizadas pela Exequente.
Observa-se, inclusive, que, nos moldes da inovação legislativa, a Administração Tributária detém mais poderes sob o patrimônio do devedor do que o próprio magistrado, vez que não precisa atender a todos os requisitos impostos ao juiz, bastando que o contribuinte tenha sido notificado e não tenha efetuado o pagamento. Sendo assim, tem-se pela evidência da inconstitucionalidade formal da norma.
Ademais, impera mencionar que a legislação em comento também contraria materialmente normas de ordem constitucional. Destaca-se pela frontal violação às normas constitucionais que asseguram, entre as garantias previstas pelo art. 5º da Carta Magna, o direito à propriedade e a reserva de jurisdição para a apreciação de qualquer lesão ou ameaça a direito. Eis o que diz o texto constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
A priori, cumpre salientar que, conforme já mencionado, diferentemente da hipótese de fraude à execução, em que esta somente será configurada quando o devedor não reservar bens ou valores suficientes para garantir o débito, a Administração Tributária, no âmbito da União, poderá decretar a indisponibilidade de bens até o limite do débito de forma totalmente discricionária, atentando para a única regra disposta em portaria de que será preferível bens imóveis, na ordem de não gravados e gravados.
Sendo assim, ao contrário do que ocorria, o devedor não possui mais sequer poder de gerência sobre os seus bens, enquanto que não pode determinar quais bens serão reservados ao pagamento de tributos e quais serão utilizados para demais finalidades, como para fins negociais, sendo que tal possibilidade lhe era garantida até mesmo na seara judicial a partir do oferecimento de bens à penhora.
Ainda, quanto ao inciso XXXV do art. 5º, tem-se que esse preceito constitucional visa evitar que qualquer ato que seja atentatório a direitos possa ser praticado à revelia do Poder Judiciário, principalmente ao tratar de direitos e garantias fundamentais, como no presente caso.
Nesse sentido, a restrição do direito à propriedade do contribuinte, diante da decretação de indisponibilidade de seus bens deve ser submetida ao Poder Judiciário, como bem formula o art. 185-A ao fazer expressa menção à necessidade de que tal medida seja determinada pelo magistrado nos autos da execução fiscal e observado requisitos mínimos que viabilizam que o contribuinte pague ou ofereça bens a penhora com base em critérios próprios de gestão patrimonial. Destaque-se que o referido princípio tem relevância fundamental na relação jurídico-tributária, tendo em vista que a prática de arbitrariedades pela Administração Tributária é extremamente comum e causa efeitos inegavelmente danosos.
Nesse sentido, conclui-se, em análise sistemática da Lei n. 13.606/2018 com o ordenamento jurídico pátrio, tem-se pela sua inconstitucionalidade formal e material, sendo que o seu advento influi negativamente no instituto preexistente de indisponibilidade de bens por ordem judicial e, também, no instituto da fraude à execução, sendo que estes perdem o sentido e podem ser considerados como tacitamente revogados.
Rwana Jander Teixeira Almeida, Advogada no escritório Advocacia David Diniz – ADD, com atuação destacada nas áreas de Direito Tributário e Empresarial; Pós-graduanda em Direito Tributário e Gestão Corporativa pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.